Oi! Como prometi na última publicação, volto hoje para falar sobre esse livro maravilhoso que fez parte do meu desafio literário de 2018.
Fiquei pensando em como escrever sobre um livro que li há três anos. Não é por não me lembrar da história, mas porque, provavelmente, se eu relesse o livro hoje, teria outras percepções. Então vir aqui e escrever agora é como escrever sobre algo que outra pessoa leu. Mas vou tentar resgatar alguns pensamentos a partir dos trechos que destaquei no livro.
Antes disso, vou contar rapidamente sobre o enredo. Contornos do dia que vem vindo conta a história de Musango. Na verdade, conhecemos parte de sua história, entre o fim da infância e o início da adolecência, em um lugar chamado Mboasu, um país africano fictício, criado pela autora. Quem narra a história é a própria Musango e essa narração se alterna em uma espécie de conversa imaginária com sua mãe, reflexões sobre sua situação e o contexto social e político e reflexões a respeito de si mesma, em um processo de autoconhecimento.
O livro começa com Musango contando sobre o momento em que foi expulsa de casa pela mãe, após sofrer mais uma violência física, em um ciclo de violências também psicológicas a que estava exposta. A menina foge e os caminhos que surgem a partir daí trazem mais violência, miséria e tristeza. Mas Musango não desiste de si mesma e isso a leva, em certo momento da história, a reencontrar sua avó. Esse encontro se torna o ápice de todo o processo de compreensão de si e do mundo por qual ela passa desde que saiu de casa. É aí que ela passa a ver o contorno desses dias futuros que, talvez, possam ser diferentes.
Contornos do dia que vem vindo é um livro um pouco triste. É um pouco pesado também, descreve cenas de violência, então, talvez, nem todo mundo esteja no momento mais adequado para lê-lo. Mas, ao mesmo tempo, é um livro bonito, com uma história muito importante. Léonora Miano nos apresenta o contexto de um país imaginário, mas que poderia ser a história real de vários lugares que passaram por um processo de colonização violenta, que gerou também muitos conflitos internos. Os efeitos da exploração aparecem na pobreza, na cultura, no desejo de fugir a qualquer custo, na manipulação de quem lucra com a miséria, entre tantas outras coisas. Então, quem puder ler, faça isso. O modo como a autora escreve ameniza um pouco a dor e deixa todo esse peso um pouco mais suportável.
Agora que falei de maneira geral, quero revisitar alguns trechos que destaquei durante a leitura. Acho que assim posso compartilhar um pouco dos sentimentos que o livro despertou em mim no momento em que li. Para começar, esse trecho que é uma das “conversas” de Musango com a mãe:
“Acho que tive razão em ceder ao medo. Não era somente medo, era meu instinto de sobrevivência. Por muitas noites, esse olhar assombrou meu sono, interrompendo bruscamente meus sonhos de implosão feérica, substituindo o seu quando você examinava meu sangue para decretar que ele não era o seu. Claro que não é o seu, mãe. É o meu. Espere eu sair deste buraco para lhe dizer na cara: a vida que você pôs neste mundo é a minha. Você acha que me deu, mas você deveria saber, você, que nasceu aqui no Mboasu, que ninguém dá a vida. Ela precede os homens e permanece depois deles sob formas diversas. Eles só podem transmiti-la. Talvez minha alma seja mais velha, mais experiente que a sua: imagine só.”
MIANO, Léonora. Contornos do dia que vem vindo. Rio de Janeiro, Pallas: 2009. p. 59
O primeiro sentimento que conhecemos de Musango, em relação à sua mãe, é a raiva. Uma raiva justificada e que a mãe também sentia por ela. Musango foi a escolhida pela mãe como culpada de toda a miséria em que viviam. É um sentimento forte e é o que mobiliza Musango a continuar em diversos momentos do livro. Parece contraditório, mas é o que a ajuda a sobreviver.
“Imagino ainda que essa terra seja povoada, sem dúvida porque me é insuportável a ideia de que eu mesma não sou mais que uma marquinha no pó, em breve invisível. Começo a chorar e não sei por quê. Nunca chorei. Quando você me batia, eu só gritava, e depois sangrava. Lágrimas, nunca. Ouço meus soluços e sinto, ao mesmo tempo, meu peito se sobrelevar. Como esse choro parece real, eu devo existir. Na dimensão paralela onde somos projetados, também existo. Se essa realidade é artificial e nós somos apenas imagens numa tela, eu no entanto existo, porque minhas emoções são reais. Sinto as coisas. Experimento-as indiscutivelmente. Então, estou na vida, e apenas o sentido me falta. Vou inventá-lo, se não puder descobri-lo, esperando o dia em que Nyambey me dirá enfim por quê. Por que as mães não amam necessariamente seus filhos. Porque a dor e a errância, por que a solidão e por que a loucura.”
MIANO, Léonora. Contornos do dia que vem vindo. Rio de Janeiro, Pallas: 2009. p. 93 – 94
Nos próximos trechos, aparece um pouco do contexto. São trechos curtos, mas o tema atravessa todo o livro. Olhando para o contexto, Musango começa a entender que sua dor, sua história e suas dificuldades, ao mesmo tempo em que são únicas, são também coletivas. Outras pessoas estão em experiências parecidas porque vivem em um contexto social que lhes impõe isso, de certo modo.
“A senhora diretora gostava de mim. Devíamos, em sua opinião, pertencer ao clã daqueles que possuíam o francês, a língua dos conquistadores, o único e exclusivo meio de nos igualarmos a eles. Pois os conquistadores tinham sobretudo uma língua e escritores para celebrá-la. Mesmo os cantores eram, antes de mais nada, declmadores de palavras. A Sra. Mulonga é de um outro tempo. Quando menina, ela os viu fazer a lei nestas terras da África equatorial. Como a muitos outros, foi-lhe inculcado que, quanto mais se parecesse com eles, mais digna ela seria de pertencer ao gênero humano. Assim, ela considerava inconscientemente, e sem dúvida com uma espécie de desespero, que aqueles que não tomavam o trem da cultura francesa estavam perdidos para sempre.”
MIANO, Léonora. Contornos do dia que vem vindo. Rio de Janeiro, Pallas: 2009. p. 127 – 128
“Estou caminhando e não estou sozinha. Nos recantos ignorados deste país, outros são meus homólogos na esperança. Outros não foram derrotados pela dor. Aqui e em todos os lugares desdenhados pelos poderosos. Eles aboliram, como eu, o amargor e a vingança, para que sua vida não trancorresse em perpétuos arrependimentos. O dia que vem vindo pertence a eles. Estou caminhando e não estou sozinha.”
MIANO, Léonora. Contornos do dia que vem vindo. Rio de Janeiro, Pallas: 2009. p. 175
Tenho aqui muitos outros trechos destacados, mas resolvi deixar apenas esses. Mais uma vez, convido vocês a lerem Contornos do dia que vem vindo. Sei que não vão se arrepender! Depois que lerem, voltem aqui para me contar o que acharam, vou gostar muito de saber.
É isso, por enquanto. Em breve eu volto para falar sobre o último livro do desafio de 2018. Se quiser ver a lista completa, é só clicar AQUI.
Até mais ler!
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