A morte é um fato. Um fato horrível, sobre o qual não gostamos de falar ou pensar. Geralmente escolhemos ignorar porque é mais fácil. Para que pensar em coisas ruins? Afinal, não se trata de nós mesmos, ou de alguém querido. Até que chega esse momento e, inevitavelmente, você se vê, de algum modo, diante da morte. É difícil generalizar uma reação, mas acredito que a maioria das pessoas nessa situação (de estar à beira da morte ou perder alguém próximo) começa a buscar algum sentido. Os porquês que nunca serão respondidos. Os se’s que não passarão de imaginação.
Devo admitir que esses pensamentos passam pela minha cabeça às vezes, mas não duram tanto. Há algum tempo encaro a morte como um fato. Não sabemos quando, mas vai acontecer. Nosso corpo não vai durar para sempre, este mundo não vai durar para sempre. Estamos limitados a um tempo e espaço e, se há divergências sobre o que acontece depois da morte, ninguém discorda que nosso corpo na Terra tem uma data de validade. Pensar dessa maneira sobre a morte não significa que dói menos. Porque ela vem e não leva só um corpo qualquer, ela leva histórias e relacionamentos. Quem fica precisa tentar colocar tudo no lugar, mesmo sabendo que esse lugar não é mais o mesmo e que algumas coisas são irrecuperáveis.
Não existe um manual para lidar com essa bagunça, cada pessoa lida de um jeito. Umas das maneiras que encontro para colocar alguma ordem nesses sentimentos é escrever. Escrever sempre foi meu jeito de organizar a mente. Por isso venho aqui hoje. Na verdade, há vários dias venho escrevendo nos meus diários tudo o que passa pela minha cabeça. É uma maneira de não enlouquecer. Esses pensamentos são muito pessoais e obviamente não tenho vontade de publicá-los aqui. Mas, como sempre, gosto de compartilhar no blog o que acredito que pode ser útil para outras pessoas.
Meu pai faleceu há quase dois meses. Quando recebi a notícia fiquei muito abalada. Não só porque foi algo repentino, mas também por estar tão longe. Enquanto tentava chegar no Brasil o mais rápido possível, só conseguia pensar no meu pai. Não nos nossos últimos momentos juntos, ou nas lembranças, eu ficava imaginando tudo o que minha família havia me contado sobre seus momentos finais. Imaginava toda a situação e as lágrimas da perda se multiplicavam ao pensar em quanta dor ele pode ter sofrido, ou se ele estava com muito medo, ou se estava triste porque não queria ir. Imaginei também a sua ida, como terá sido essa passagem? Ele se sentiu perdido? Confuso? Isso foi angustiante para mim. Mesmo sabendo que meu pai estava morto, eu estava preocupada em como ele estava se sentindo, preocupada pensando se ele estaria em paz.
Já comentei em vários momentos aqui no blog sobre minha fé. Apesar de não frequentar a igreja há anos (por diversas razões que não vêm ao caso agora), me considero cristã. À luz do Cristianismo a morte é algo quase bonito. Bonito porque finalmente deixamos para trás esse mundo ao qual não pertencemos e nos encontramos com Aquele que nos deu a vida. Quando meu pai faleceu as principais palavras de consolo eram: “ele está bem, está com Deus, foi para o céu”. As últimas palavras do meu pai, segundo disseram, foi: “Deus está me chamando”. Essas palavras trouxeram consolo para muitos familiares e amigos. Eu tentava/tento repeti-las para mim mesma, a fim de me consolar. Mas, na verdade, minha maior questão era: como ele chegou no céu? Quem levou ele? Será que ele já chegou lá? Para quem não é cristão, talvez meus questionamentos soem muito ingênuos. Para quem é cristão, talvez eles soem heréticos. Mas eram os meus pensamentos nos primeiros dias e eu não podia evitar.
Foi aí que me lembrei de um livro do C.S Lewis que tinha lido há poucos anos, chamado O Grande Abismo. No livro, o autor imagina como seria esse momento depois da morte, digamos assim, o momento e lugar de passagem. Quis reler esse livro, não para encontrar respostas, porque trata-se de uma ficção, Lewis deixa bem claro que é só um exercício da imaginação. Mas esperava encontrar algum tipo de tranquilidade com essa leitura, talvez eu mesma poderia imaginar como seria. De fato, fiquei mais tranquila, mas apenas por finalmente conseguir me concentrar em ler alguma coisa e assim, distrair minha mente. A releitura, em si, não me acrescentou nada do que já não havia acrescentado antes. Porém, nas indicações de outros livros no final encontrei outro do Lewis, até então desconhecido por mim, chamado Anatomia de uma dor, que é, na verdade, formado por trechos do diário do autor, escritos na ocasião da morte de sua esposa. O livro fala sobre o luto. Resolvi ir atrás dele. C. S. Lewis é um dos meus escritores favoritos e eu queria saber o que ele tinha a dizer sobre o assunto.
Encontrei nesse livro todos os pensamentos que passavam pela minha cabeça, foi meio impressionante. Nesse livro, Lewis está devastado. E, embora sempre muito objetivo em sua escrita, também fica evidente o tormento do seu coração. Não é um livro sobre como enfrentar o luto, é a exposição de sua dor, seus questionamentos diante da perda da mulher que amava, suas dúvidas sobre a morte e sobre como lidar com a situação em que se encontrava. Em vários trechos, o escritor levanta as mesmas questões que eu estava levantando em minha mente. Vejam esse trecho, por exemplo:
Onde ela está agora? Ou seja, em que lugar ela está neste momento? Se H., porém, não for um corpo – e o corpo que amei com certeza não é mais H. – ela não se acha em parte alguma. E o “neste momento” é uma data ou um ponto em nossa sucessão temporal. É como se ela partisse numa viagem sem mim e eu dissesse, olhando meu relógio: “Será que ela está em Euston agora?”. Contudo, a menos que ela esteja seguindo a sessenta segundos por minuto ao longo dessa mesma linha do tempo que nós, os vivos, devemos percorrer em viagem, o que significa agora? Se os mortos não estão no tempo, ou não no tipo de tempo que nos é peculiar, haverá alguma distinção clara entre era, é e será quando falamos deles?
Comecei a me sentir menos sozinha. Sei que muitas pessoas devem ter esses questionamentos também, como eu tenho, como Lewis teve. Mas essa é outra coisa sobre o luto, a gente se sente extremamente solitário. Por mais que compartilhemos a dor com outras pessoas (meus irmãos também sofrem a perda do pai; minha mãe sofre pelo esposo; meus tios, pelo irmão), ninguém tem a mesma experiência com a dor, é diferente para cada um. Por isso, cada pessoa também reage de maneira diferente. Cada um tem seu luto de maneira diferente e, na solidão da minha dor, eu só consegui me identificar com esse livro.
Lewis fala muitas coisas interessantes, mas o outro ponto que me tocou profundamente, por ver ali meus próprios pensamentos, foi sobre o consolo do reencontro. Outra fala repetida muitas vezes quando querem oferecer consolo na morte é: “um dia nós vamos nos reencontrar e tudo vai ser muito bonito”. Mais uma vez me pego pensando nisso repetidas vezes para tentar me consolar e à minha família. Digo que essa ausência é temporária, que um dia a gente vai se encontrar. Lewis também tentou se consolar assim, mas, a certa altura, ele se dá conta de que talvez estivesse equivocado em sua busca por reencontrar a esposa.
Será que eu estaria, por exemplo, só voltando a me aproximar sorrateiramente de Deus porque sei que, se houver alguma estrada até H., ela passa por Ele? Mas então, é claro, sei muito bem que Ele não pode ser usado como uma estrada. Se você se aproxima dEle não como uma meta, mas como uma estrada, não como o fim, mas como um meio, você na verdade não está aproximando-se dEle. E isso é o que estava verdadeiramente errado com todas aquelas representações populares de reuniões felizes sobre “o outro lado do rio”: não as imagens simplórias e por demais grosseiras, mas o fato de que elas põem um Fim ao que só podemos obter como um subproduto do verdadeiro Fim.
Senhor, são essas as suas verdadeiras palavras? Só poderei encontrar H. de novo se aprender a amá-lO tanto que não me preocupe com encontrá-la? […] Se eu soubesse que ver-me separado eternamente de H. e ser eternamente esquecido por ela haveriam de emprestar a seu ser uma alegria esplendor maiores, evidentemente eu diria: “fogo à frente”. Assim como se, na Terra, eu pudesse tê-la curado do câncer não a vendo nunca mais, eu teria tomado providências para não vê-la de novo. Eu teria sido obrigado a fazer isso. Qualquer pessoa decente o faria. Mas o caso é bem outro. Não se trata da situação em que me encontro”.
É claro que ter a esperança do reencontro acalma o coração, consola realmente. Mas, primeiro, será que realmente reencontraremos nossos entes queridos? Segundo, se nos reencontrarmos, será que daremos a importância que agora acreditamos que daremos? De acordo com o pensamento de Lewis nesse e em outros livros, a pessoa que morreu está vendo e fazendo coisas muito mais interessantes. Ela está plena do próprio Amor que a criou. Seu tempo na Terra foi só um pedacinho da plenitude de sua vida eterna. Não que não tenha sido importante, mas agora a vida terrena ficou para trás e deu espaço a algo muito maior.
Apesar de todos os questionamentos, Lewis sugere que nosso foco deve ser esse “algo muito maior”. Não que devamos esquecer as pessoas que morreram, mas não devemos colocar nossa esperança na ideia de que após a morte nos reencontraremos para ser como era antes, como era aqui. Não dá para saber se isso realmente o consola, mas no final do livro dá para ver que isso parece oferecer a ele certa paz de espírito, se podemos dizer assim.
Bem, eu ainda não alcancei esse nível. Embora a leitura do livro tenha me ajudado bastante neste momento, sinto que esse pensamento não traz consolo nenhum. Significa, então, que a morte do meu pai foi realmente o final da nossa história juntos. Não é uma ideia legal. Talvez, assim como Lewis, eu tenha que olhar para o que é maior do que a vida na Terra, mas ainda não consigo. Me sinto mais tranquila em relação a meu pai estar bem, sinto que ele está, sim. Mas a ausência dói porque é definitiva. Não estou na fase que todos dizem ser a “das boas lembranças e saudade boa”. Estou na fase de que é difícil ver as fotos, é triste pensar no que não pôde e não poderá ser. A fase em que as pessoas seguem com a vida normal, porque o encontro com a morte não foi delas, foi seu, e você tenta se encaixar nesse normal, no cotidiano, mas não consegue muito bem, porque o normal agora é diferente, falta uma parte.
Nesse livro, Lewis oferece a ideia de que a morte de alguém querido é uma amputação. O corpo continua ali, mas não é o mesmo e você tem que aprender a lidar com a falta dessa parte. Você vai ter que conviver com isso pelo resto da sua vida. Não é fácil, nem é rápido. Mas é necessário.
Seguimos caminhando. Espero que esse texto seja útil para alguém, mas só o fato de escrevê-lo já foi útil para mim. Então obrigada se você leu até o final.
Se alguém ficou interessado por esse livro do Lewis, vou deixar abaixo os dados. Parece que está esgotado (ou já não estão lançando novas edições), mas ainda é possível encontrar por aí. É um livro com muitos erros de edição (por isso acredito que não esteja circulando), mas se ignorar isso, vale a pena pelo conteúdo.
Anatomia de uma dor – um luto em observação
Título original: A grief observed
Autor: C. S. Lewis
Editora Vida, 1996
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Para citar este texto utilize a referência: Toledo F., Sarah. 2019. “Sobre o luto”, Publicado em sarices.wordpress.com, url: https://sarices.wordpress.com/2017/11/03/sobre-o-luto/. Acesso em [dd/mm/aaaa].
Encontrei seu blog há poucos dias, através da Karina Kuschnir. Feliz descoberta nessa internet meio sem graça.
Também perdi meu pai e me identifico com muito do que você diz. O “nunca mais”, a sensação de amputação, tudo isso dói muito. A gente que fica tenta por em palavras e acaba criando alguma poesia. Obrigada. um beijinho.
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Oi, Michele!
Essa internet realmente proporciona uns encontros muito bonitos. Obrigada por visitar o blog e deixar seu comentário.
O luto é mesmo bem difícil de colocar em palavras, os sentimentos são parecidos entre as pessoas, mas o que a gente sente lá no fundo às vezes nem a gente entende. Mas o coração quebrado vai aos poucos sendo colado e vamos aprendendo a conviver com a ausência, né? Ainda assim, continua doendo.
Um abraço!
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Realmente, a parte mais difícil é saber que nossa história com ele terminou, e Lewis tem razão quanto a essa ideia da amputação. Eu me sinto assim também.
Também acredito que o salvo, quando chega no céu (e isso se dá imediatamente após a morte, de acordo com a Bíblia, não há um caminho ou um tempo de sono), ele só vai querer desfrutar de tudo aquilo, é ali que a vida realmente começa, e ainda por cima ao lado do seu Salvador… Por isso, assim como ele lá não ficará mais preocupado com os que estão aqui, nós, ao chegarmos lá, não estaremos ansiosos por estar com ele, e sim com Cristo (apesar de eu acreditar que Deus permitirá reencontros, mas não será esse nosso maior desejo).
Pensando assim então, o consolo do reencontro, como vc falou, realmente não é tão animador, esse ciclo com a pessoa está encerrado, no sentido desta terra.
Então, quando penso em paz e consolo para este momento, não me consola o possível reencontro, mas sim saber para onde ele foi. Você disse q o cristianismo tem uma visão linda sobre a morte, e é em partes verdade. Na verdade, a visão do cristianismo a respeito da morte é q ela é uma consequência do pecado. Todos nascemos condenados à morte porque somos todos pecadores, não escapa ninguém. O que você acha bonito na visão cristã de morte é a esperança do q vem depois. Essa esperança não é para todos. É para todo aquele que recebe a graça de Deus por meio da fé em Cristo Jesus. Só para esses, por mais q uma visão mais emergente e universalista hoje em dia queira dizer q não é assim, que o Deus de amor no final terá misericórdia de todos; ou por mais q outros se revoltem com essa ideia de condenação e inferno e preferem não acreditar nisso para não trazer pensamentos a respeito de um deus cruel e impiedoso… A verdade é que nem todos têm essa esperança, isso está na Bíblia e aquele que crê nela como Palavra de Deus infalível, como nós, não temos opção de pensarmos diferente.
Estou falando tudo isso para mostrar como é grande o consolo para aquele q tem essa esperança, pois muitos não a têm. Se todos fossem salvos, a morte traria essa esperança para todos, mas não seria o mesmo alívio, já que o céu seria o destino de todos. Agora, saber q existe um inferno, que é um lugar de tormentos tão eternos quanto é a maravilha do céu, e saber que o papai não foi pra lá porque ele respondeu com fé ao chamado da graça, apesar e toda sua pecaminosidade ( q nós tbm temos) é um alívio enorme, uma paz e alegria que muitos não entendem.
Isso não muda a tristeza do luto em si, por conta da ausência da pessoa q amamos, mas é uma esperança real, não são só palavras pra amenizar o sofrimento.
Isso me ajuda muito, ajuda tanto que, ao orar a esse respeito, tudo o q consigo fazer é agradecer a Deus pelo que aconteceu e pela forma como Ele decidiu q as coisas acontecessem.
Espero que isso ajude vc também!
Também tenho orado para q o destino de todos nós seja o mesmo do dele pq, apesar de saber que lá, naquele momento, não haverá preocupação maior do q estar com Cristo, aqui é bom pensar e desejar que nossa família inteira esteja reunida desfrutando junta a eternidade.
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Você tem razão em tudo. Quando eu disse que do ponto de vista do Cristianismo a morte é uma coisa bonita, foi pensando no que vem depois e não no motivo da morte existir. Mas mesmo sabendo disso tudo a tristeza vem e todas essas questões, você sabe como é.
Aos poucos vamos nos recuperando, da maneira que for possível.
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