Sangue Negro

Essa é a segunda publicação da minha leitura de julho do Desafio Literário: 12 livros escritos por mulheres para 2017. Sei que estou um pouco atrasada, mas antes tarde que nunca. Para ler a primeira parte, onde eu falo sobre a escolha do livro, clique aqui. 😉

….

É difícil explicar minha relação com a poesia. Sempre a apreciei, mas também sempre me senti um pouco insensível em relação a ela. Talvez, em alguns casos, eu não tenha entendido bem mesmo. Em outros casos, acredito que possa ter sido falta de identificação ou afinidade com o tema. Faz pouco tempo que tenho dado mais atenção à poesia e lido alguns escritores que têm me proporcionado uma experiência diferente com esse estilo. Noémia de Sousa certamente é uma dessas pessoas.

Mas como não ser levada por essa força presente nos poemas da escritora? Ler Sangue Negro foi uma experiência que me causou ao mesmo tempo alegria e tristeza, ânimo e revolta, dor e coragem. São sentimentos que se tornam ainda mais interessantes se pensarmos no contexto em que a autora estava inserida. Suas poesias não foram feitas especificamente para um livro. Apenas muitos anos depois elas seriam reunidas para esse fim. A escritora publicava seus poemas em jornais, entre 1948 e 1951. Esses escritos dialogavam com todo um movimento de reivindicação da Negritude e contra a colonização portuguesa. São poemas que circulavam de mão em mão e alcançavam do cidadão comum que lia seu jornal ao revolucionário que precisava de ânimo para seguir na luta. Vejam, por exemplo, essa poesia:

Poema

Bates-me e ameaças-me,

agora que levantei minha cabeça esclarecida

e gritei: “Basta!”

Armas-me grades e queres crucificar-me

agora que rasguei a venda cor de rosa

e gritei: “Basta!”

Condenas-me à escuridão eterna

agora que minha alma de África se iluminou

e descobriu o ludíbrio…

E gritei, mil vezes gritei: “Basta!”

Ó carrasco de olhos tortos,

de dentes afiados de antropófago

e brutas mãos de orango:

Vem com o teu cassetete e tuas ameaças,

fecha-me em tuas grades e crucifixa-me,

traz teus instrumentos de tortura e amputa-me os membros, um a um…

Esvazia-me os olhos e condena-me à escuridão eterna…

– que eu, mais do que nunca,

dos limos da alma,

me erguerei lúcida, bramindo contra tudo:

Basta! Basta! Basta!

(Noémia de Sousa – Livro: Sangue Negro (p. 122)

Noémia de Sousa, considerada a mãe dos poetas moçambicanos, era também uma incansável militante em defesa da liberdade de Moçambique e de sua grande Mãe África. Também não se esqueceu da resistência das mulheres negras em seus poemas. Inserida nesse contexto, a escritora viu vários de seus colegas e amigos sendo mortos, presos ou exilados. Ela mesma se exilou, primeiro na França, depois em Portugal, onde viria a falecer longe de sua terra natal. O livro Sangue Negro não é apenas a compilação de sua obra, é uma merecida homenagem a essa grandiosa mulher.

A primeira edição foi publicada em 2001 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). Noémia de Sousa relutou um pouco para que seus poemas se transformassem em um livro, apesar de toda a insistência de seus amigos e companheiros de Literatura para essa publicação. Por esse motivo demorou tanto tempo para que esses poemas estivessem disponíveis nesse formato. A segunda edição do livro é do ano 2011, lançada pela editora Marimbique. Infelizmente foram necessários mais alguns anos para essa obra chegar ao Brasil. Em 2016, a editora Kapulana publicou o livro em nosso país, o que permitiu aos leitores brasileiros terem acesso mais facilmente aos poemas de Noémia de Sousa. Aliás, com essa edição muitos leitores, como eu, tiveram a chance de conhecer a escritora, o que foi um presente, mas também mostra a nossa defasagem em ler e buscar mais escritoras negras, africanas, de países com certa proximidade com o nosso, como é Moçambique. Noémia de Sousa tinha um grande carinho pelo Brasil e possuía vários amigos brasileiros, com os quais mantinha uma troca de ideias e colaborações.

O livro publicado pela editora Kapulana é uma verdadeira preciosidade. Além dos poemas, traz incríveis ilustrações feitas por Mariana Fujisawa e um prefácio superinteressante (especialmente se você ainda não conhece nada sobre Noémia de Sousa) escrito pela professora e pesquisadora Carmen Lucia Tindó Secco. Ainda mais, o livro traz textos que fizeram parte das edições anteriores (de 2001 e 2011) e várias mensagens em homenagem à autora, enviadas por outros escritores, pesquisadores e amigos de Noémia. Ou seja, mais que apreciar a maravilhosa obra da escritora, podemos conhecer também a importância e a abrangência de sua poesia.

Enfim, Sangue Negro foi mais uma incrível experiência de leitura que esse desafio me proporcionou. E conhecer Noémia de Sousa, me emocionar com sua poesia, me encorajar em sua força, foi um grande presente. Espero que vocês também se animem a conhecê-la. Depois voltem aqui para me contar o que acharam.

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Para ver a lista do meu desafio literário desse ano, com os livros já lidos e os que ainda faltam, clique AQUI.

3 comentários em “Sangue Negro

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