Da série: textos antigos que tenho guardados e resolvi republicar.
Já contei aqui que, em uma época um pouco distante da minha vida, costumava escrever historinhas bobas para as pessoas que me contavam um causo. Eu pegava esse causo, acrescentava um pouquinho da imaginação que ainda tinha naquela época e escrevia uma história. Como bobeira nunca é demais, resolvi republicar algumas aqui. Essa escrevi em 2010, para uma tia, que jurou ter engolido uma barata enquanto dormia. Pensei que deveria ter sido traumático para ela, mas para a barata também, né? Enfim, fiquei relendo essa historinha e dando risada de tudo: da barata, da minha tia e de mim mesma por escrever um trem desse. Aliás, me dei conta de que todas minhas historinhas são bem trágicas. Isso deve dizer alguma coisa sobre mim.
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A barata tonta
Pobre, Tabara! Ela se tornou uma barata literalmente tonta. Ficou acidentalmente bêbada e achou como casa um estômago. Essa curiosa história vou contar agora. Com o aviso para os mais sensíveis: se detestam baratas, parem por aqui, não leiam até o fim.
Tabara era uma barata esperta. Ainda jovenzinha, verdade, mas experiente. Conhecia muitas estratégias para conseguir comida e, o que é mais importante, escapar das chineladas e vassouradas dos humanos. Até mesmo dos inseticidas ela conseguia escapar: ao ver alguém pegar a latinha com o veneno, corria para se esconder em um buraco na parede, onde ele não chegava. Esse buraco ficava atrás do armário da cozinha, embaixo, perto do chão. Era o esconderijo perfeito, pois os humanos daquela casa não sabiam de sua existência. Ali Tabara passava o dia, cuidando de sua casa (acho que podemos dizer que o buraco era sua casa), até que a noite vinha, todos ficavam em silêncio, iam dormir e ela, então, saía em busca de alimento.
A baratinha vivia uma vida tão cômoda, que, em alguns momentos, nem era preciso sair e se arriscar durante a noite. Às vezes, com preguiça de fazer uma limpeza rigorosa, os moradores da casa jogavam alguns farelos de comida para debaixo do armário e isso, como vocês podem imaginar, facilitava muito a vida de Tabara. Ela não poderia morar em melhor lugar! Só havia um problema: começou a se entediar. De vez em quando encontrava outras baratas, suas amigas, e ouvia as histórias de fugas emocionantes vividas por elas. Tabara não tinha grandes histórias para contar e isso a incomodava. Também queria viver aventuras e, assim, decidiu se arriscar um pouco mais em suas saídas. “Talvez”, ela pensou, “eu nem precise esperar que chegue a noite.” E muitos planos passaram por sua cabeça de barata.
Em suas primeiras aventuras, Tabara se saiu muito bem. Ela era extremamente rápida e já conhecia todos os lugares da casa em que poderia conseguir comida. Ela já não saía só em busca de alimento, adquiriu o hábito de fazer alguns passeios. Perigosos passeios, pois sempre tinha alguém em casa e, como vocês sabem, uma barata não passa despercebida. Mesmo as limpinhas, como era Tabara, causam nojo e medo em grande parte das pessoas.
Mas, apesar do perigo, Tabara estava feliz. Ela gostava de se arriscar. Agora, nas conversas com suas amigas, era a primeira a dizer que a vida era curta, a qualquer momento poderiam morrer amassadas por um tamanco, então deveriam aproveitar, deveriam se permitir viver. Esse era o seu discurso. Tabara nem imaginava o que a vida estava reservando para ela.
Vamos considerar o seguinte: Tabara estava com a razão em querer aproveitar um pouco mais a vida. A busca pela comida e os passeios estavam fazendo muito bem a ela, isso é verdade. Porém, todas as coisas têm um limite que devemos respeitar se não quisermos acabar mal. Isso foi exatamente o que Tabara não fez. A cada dia ela se arriscava, como se nada pudesse acontecer . Se esquecia que era uma barata, desprezando o poder do chinelo e, principalmente, do inseticida.
Certo dia, Tabara estava cansada e impaciente por ficar em casa e ter que esperar até à noite para sair, embora já estivesse quase anoitecendo. Ela não se controlou e saiu para dar umas voltas, quem sabe até encontrar um pedaço de doce. Mas que azar! Era o momento em que a casa estava mais cheia. Foi só Tabara colocar as patas para fora e uma menina começou a gritar: “Um monstro! Um monstro! Me ajudem!” Tabara viu graça naquilo. Se conseguia assustar uma menina daquele tamanho, não teria maiores problemas e saiu correndo pela cozinha. O que ela não esperava é que a ajuda chegasse. Logo vieram todos da casa acudir a menina. Vendo a baratinha, cada um se armou como conseguiu.
Com toda sua agilidade, Tabara escapou dos sapatos, vassouras e rodos. Mas não teve tempo de se esconder no buraco atrás do armário e, por isso, não escapou do inseticida. Levou veneno bem na cara e saiu andando, bêbada, sem rumo. Uma barata tonta. Com o mínimo de sobriedade que lhe restava, Saiu do apartamento por debaixo da porta e, andando sem rumo, entrou no vizinho, onde desmaiou em um canto escuro da sala.
Quando acordou, já era de madrugada. Não sabia onde estava e se sentia muito mal. Aquele inseticida era realmente forte. Saiu andando, pensando que talvez encontrasse algo para comer. Mas não conhecia nada ali e ainda estava um pouco tonta. Sem perceber por onde andava, Tabara começou a subir pela cama da dona da casa que, neste momento, dormia com a barriga para cima e a boca meio aberta. É necessário que façamos uma pequena pausa, para falar sobre a dona da casa.
Seu nome era Lica. Ela não gostava de baratas. Mantinha seu apartamento sempre muito limpo para não correr o risco de encontrar esses seres, ou outros parecidos. Ela tinha nojo, mas também um pouco de medo de encontrá-los em lugares indesejados, como no meio de um alimento. Já tivera problemas com vários animaizinhos assim. Como, por exemplo, no dia de seu aniversário, há meses atrás, em que formigas tentaram roubar seu bolo. Por isso, definitivamente, queria distância de qualquer bicho parecido. Mas, infelizmente, certos acontecimentos estão fora do nosso controle e o encontro entre Lica e Tabara foi desagradável para as duas.
No momento em que Tabara se deparou com Lica, ela estava dormindo. Talvez não tão profundamente, mas o suficiente para não se dar conta que uma barata andava pelo seu corpo. É claro que, em condições normais, Tabara também não sairia andando pelo corpo de ninguém, não se arriscaria tanto. Mas esta foi a situação: ao se aproximar da boca de Lica (que, como vocês se lembram estava meio aberta), Tabara se desequilibrou e caiu lá dentro, indo parar na garganta da dona da casa! A baratinha ficou desesperada! Se debatia toda e movimentava suas patinhas, tentando sair de lá. Isso, obviamente, fez Lica acordar. Confusa e achando que estava se engasgando, a mulher fez um esforço e engoliu Tabara, indo rapidamente até à cozinha para beber um enorme copo de água. Tabara escorregou como em um tobogã pelo esôfago de Lica, indo parar em seu estômago. Já voltamos para saber o que lhe aconteceu.
O caso é que Lica voltou inquieta para o quarto, com uma péssima sensação de ter algo parado no meio (no início, na verdade) do caminho digestivo. Vocês conhecem essa situação se já tiveram que tomar um comprimido muito grande. Parece que ele fica entalado, não é? Era assim que Lica se sentia, mas tinha algo mais. Ela sentia patinhas se movendo dentro dela, tentando subir. Por isso, se convenceu de que não havia simplesmente se engasgado, mas engolido algum bicho e nada tirava de sua cabeça que foi uma barata.
Começou a passar muito mal, suava frio e sentia até dores. Tentou acordar seu esposo para contar que havia engolido uma barata, mas ele não lhe deu muita atenção, murmurou um: “Humhum, que interessante!” e continuou a dormir. Lica estava péssima. Não conseguia parar de pensar no assunto e sentia aquela “coisa estranha” dentro dela. Ficou muito tempo pensando que morreria com aquilo, até que adormeceu.
É claro que ela não morreria! Mas o mesmo não podemos dizer de Tabara, infelizmente… A baratinha fez o que pode para escapar. Ao chegar no estômago, foi atingida por um jato de ácidos, daqueles que o estômago lança para ajudar a gente na digestão. Acontece que Tabara não era um alimento! Tentando salvar sua vida, começou a subir a fim de sair por onde tinha entrado, a boca de Lica. Imaginem a pobre baratinha, em um buraco gosmento que soltava ácidos! Sim, porque ela não sabia onde estava, sua única intenção era sair. Tabara lutou até não conseguir mais. Escorregou pelas paredes molhadas e caiu já desfalecida no estômago de Lica.
No dia seguinte, Lica acordou ainda mal e contou detalhadamente o que lembrava para o marido e os filhos. Ela estava certa de que havia engolido uma barata. Mas ninguém acreditou, todos acharam impossível e riram muito de Lica. Ela, no entanto, realmente começou a passar mal, apesar de Tabara já ter padecido dentro de seu organismo. Sentia-se mal porque não gostava de baratas. Qualquer um se sentiria assim se não gostasse também e soubesse que havia engolido uma (não é assim quando comemos jiló?). Lica sentia dores, calafrios, tinha febre. Tudo o que podem imaginar. Foi assim até que Tabara saiu. Daquele jeito natural, como todos sabemos. Lica sabia que a baratinha tinha saído, pois logo começou a se sentir bem. Desde então fica muito esperta para não dormir mais com a boca aberta e não correr o risco de engolir outra barata ou inseto.
Essa foi a trágica história de Tabara, a barata tonta.